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A PROMESSA

Tão depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o esconderijo, e corri
à varanda do fundo. Não quis saber de lágrimas nem da causa que as fazia verter
a minha mãe. A causa eram provavelmente os seus projetos eclesiásticos, e a
ocasião destes é a que vou dizer, por ser já então história velha; datava de
dezesseis anos.
Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o
primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse,
prometendo, se fosse varão, metê-lo na igreja. Talvez esperasse uma menina.
Não disse nada a meu pai, nem antes, nem depois de me dar à luz; contava fazê-
lo quando eu entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso. Viúva, sentiu o
terror de separar-se de mim; mas era tão devota, tão temente a Deus, que
buscou testemunhas da obrigação, confiando a promessa a parentes e familiares.
Unicamente, para que nos separássemos o mais tarde possível, fez-me aprender
em casa primeiras letras, latim e doutrina, por aquele padre Cabral, velho amigo
do tio Cosme, que ia lá jogar às noites.
Prazos largos são fáceis de subscrever; a imaginação os faz infinitos. Minha mãe
esperou que os anos viessem vindo. Entretanto, ia-me afeiçoando à idéia da
igreja; brincos de criança, livros devotos, imagens de santos, conversações de
casa, tudo convergia para o altar. Quando íamos à missa, dizia-me sempre que
era para aprender a ser padre, e que reparasse no padre, não tirasse os olhos do
padre. Em casa, brincava de missa, — um tanto às escondidas, porque minha mãe
dizia que missa não era coisa de brincadeira. Arranjávamos um altar, Capitu e eu.
Ela servia de sacristão, e alterávamos o ritual, no sentido de dividirmos a hóstia
entre nós; a hóstia era sempre um doce. No tempo em que brincávamos assim,
era muito comum ouvir à minha vizinha: "Hoje há missa?" Eu já sabia o que isto
queria dizer, respondia afirmativamente, e ia pedir hóstia por outro nome. Voltava
com ela, arranjávamos o altar, engrolávamos o latim e precipitávamos as
cerimônias. Dominus, non sum dignus... Isto, que eu devia dizer três vezes, penso
que só dizia uma, tal era a gulodice do padre e do sacristão. Não bebíamos vinho
nem água; não tínhamos o primeiro, e a segunda viria tirar-nos o gosto do
sacrifício.
Ultimamente não me falavam já do seminário, a tal ponto que eu supunha ser
negócio findo. Quinze anos, não havendo vocação, pediam antes o seminário do
mundo que o de São José. Minha mãe ficava muita vez a olhar para mim, como
alma perdida, ou pegava-me na mão, a pretexto de nada, para apertá-la muito.

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